Toda vez que vou a Pirenópolis, embora seja tentador passear o tempo todo pelas lojinhas de artesanato ou mergulhar em alguma cachoeira, procuro me controlar e fazer aquilo que mais gosto: conversar com os mais velhos. Já tenho até clientela cativa. Eu chego na cidade e logo surge alguém com uma história antiga para me contar. No feriado do Dia do Funcionário Público, em conversa com Dona Sebastiana, que faz o melhor pão de queijo da cidade, ouvi uma história estarrecedora. Ela me contou que, no início do século 19, uma grande seca assolou o cerrado goiano e o Rio das Almas correu dentro de uma telha. Na época, muita gente morreu, roças foram destruídas e o gado acabou.
Mais tarde, quando fui mergulhar na cachoeira da Usina Velha, notei como o nível d'água vem baixando significativamente a cada ano. Desta vez, no entanto, não se trata de um catástrofe passageira, como aquela seca terrível de dois séculos atrás. O problema agora é outro e muito mais sério, pois resulta da degradação ambiental permanente. Não foi difícil para mim localizar nas redondezas daquela cachoeira uma infinidade de latas, plásticos, vidros etc., tudo jogado pelos turistas que visitam o lugar e que deveriam cuidar bem daquele santuário ecológico.
Voltei para casa um pouco preocupado com tudo isso e conversei com minha avó. Ela me contou que, na época de sua infância e juventude, chovia sem parar no cerrado de setembro a dezembro, quando então vinha o veranico de janeiro, época de cuidar das roças e secar as roupas. O veranico durava no máximo uns dez dias, para depois descer um toró d'água sem pena nem dó.
Essa chuva toda persistia até a chegada definitiva da seca, lá pelo mês de maio, que se estenderia religiosamente por todos os meses sem a letra “erre”.
Nos tempos atuais parece que a chuva amiúda cada vez mais. E para completar o calor aumenta ano após ano, como se ardesse uma fornalha debaixo do chão. Outro dia, aqui em Goiânia, um fedor insuportável se alastrou por vários bairros e causou um alvoroço sem fim, embora até o momento ninguém saiba explicar convincentemente de onde ele veio. Tudo isso é o resultado da ocupação desenfreada e sem planejamento do nosso cerrado, da derrubada das matas, da matança de animais silvestres, da destruição das veredas e outras nascentes de rios.
Não é ainda o fim dos tempos. Há esperança de reverter esse processo destruidor e salvar nosso planeta de uma catástrofe ambiental sem precedentes. Mas para isso devemos fazer a nossa parte, que começa na coleta seletiva de lixo e passa por banhos mais rápidos, reciclagem e economia de toda ordem.
No caso de Pirenópolis, tem de haver uma política ambiental mais efetiva, com fiscalização do poder público sobre as áreas de camping e cachoeiras, somada a campanhas constantes de conscientização sobre a necessidade de preservar sempre. Na velha Meia Ponte está a região do Parque dos Pireneus, considerada divisor de águas continentais, pois do lado sudeste suas nascentes compõem o Rio Corumbá, que desagua no Paranaíba, segue pelos rios Grande, Paraná, da Prata, e por fim o Oceano Atlântico, entre a Argentina e o Uruguai; do lado oeste, suas águas formam o Rio das Almas, que corta Pirenópolis ao meio e segue para noroeste na direção da Bacia do Tocantins, que por sua vez vai desaguar ao norte do Brasil, foz da Ilha de Marajó no rio Amazonas, e depois no oceano Atlântico.
Veja a importância das águas goianas para o mundo, nesse instante de tamanha preocupação ambiental. O olho-d'água das veredas de buritis do cerrado é a fonte da vida. Espero que o Rio das Almas nunca mais corra dentro de uma telha e que as cachoeiras continuem a jorrar majestosas e eternas. Mas tudo tem um preço, e o compromisso com o respeito à natureza deve ser firmado por todos nós.
(by Adriano César Curado - Publicada no Diária da Manhã de 7.11.08)
4 comentários:
Muito boa a matéria de Adriano César Curado sobre a água, fonte de toda a vida e responsável pela diversidade de criaturas que ora caminham sobre a Terra. Terríveis são os dias atuais, que preocupam a gente e fazem pensar nas probabilidades de um futuro viável para o humanidade. Mas o próprio escritor afirma que "ainda não é o fim dos tempos" e nos brinda com uma palavra maravilhosa: "esperança". Preservando-se a água, preserva-se a vida, e as futuras gerações terão oportunidade de herdar esse magnífico torrão estrelar chamado Terra. (comentário postado por Piettro Andrade no Jornal DM, em 07.11.2008 - e-mail: piettro7@hotmail.com
Gostaria de parabenizar o autor da matéria citando o Livro de São Lucas, Capítulo VI, Versículo XXXI - "Tratai todos os homens da mesma forma que quererieis que eles vos tratassem". A natureza também é o próximo mencionado no mandamento amai ao próximo como a si mesmo. As ações humanas de degradação ambiental resultam na reação natural contrária e na mesma proporção praticada pelo homem. Se amarmos a natureza como ela merece, demonstrando esse afeto com o cuidado ncessário, ela nos retornará com toda sua grandiosidade e generosidade. A devastação também é recompensada com as tormentas, secas, desequilíbrio, etc. Portanto, cabe a nós cuidarmos da natureza como cuidamos de nós mesmos, devotando a ela todo o respeito que merece, para que o Rio das Almas jamais corra dentro de uma telha... (Comentário postado por Luis Eduardo Barros Ferreira no Jornal DM em 07.11.2008 - e-mail: luisedubf@yahoo.com.br)
Caro Dr. Adriano.
A preocupação com o Meio Ambiente é para nós uma luta antiga. Como Conselheiro Municipal do Meio Ambiente, Presidente a Associação dos Condutores de Visitantes de Pirenópolis e membro do Fórum Ambientalista de Pirenópolis, vimos a anos tentando instituir uma lei municipal para a política local do meio ambiente para poder ter autonomia sobre as questões ambientais locais como o lixo nos atrativos e outros, cabendo ao poder executivo local a gestão e fiscalização das ações referentes ao tema. Porém, é grande a dificuldade de se fazer que os vereadores e gestores públicos se concientizarem da necessidade de licenciamento e gestão ambiental das áreas de preservação destinadas a visitação, como o Parque dos Pireneus e as cachoeiras. Esperamos que nesta nova gestão seja aberta a discusões proveitosas e seja feita ações efetivas para tal, como a constituição das leis locais, transformação do COMDEMA em órgão deliberativo, movimentação do FUMDEMA (Fundo) e formação de instrumentos legais e fiscais locais. É um grande avanço para Pirenópolis se conseguirmos isso. Como o senhor é advogado e assessor do Ministério Público e ciente do amor que possui por Pirenópolis e ao Meio Ambiente, convido-o a participar das discussões e do processo que provavelmente virá a tona assim que reativar o COMDEMA e a nova secretaria. Queira Deus que assim seja feito neste próximos anos. Parabéns pela matéria e pela importância dada a nossa linda cidade. (Comentário postado por Mauro Cruz no jornal DM, em 24.11.2008)
Parabéns ao escritor Adriano César Curado, por nos lembrar que a água é "A fonte da vida". Nenhuma criatura sobrevive sem beber dos mananciais que o Criador espalhou pelo Cerrado, como se fossem os seios de onde jorra precioso líquido, presente da Divindade, vital a todo ser que habita este maltratado planeta: a água! (Comentário postado por Thais Valle no Jornal DM, em 07.11.2007 - e-mail thaissvalle@hotmail.com)
Postar um comentário